As Lutas de Classes no Brasil - Nildo Viana



A Luta de Classes no Brasil (2013-2015)

Nildo Viana

A sociedade brasileira, a partir de 2013, entrou num processo de crescentes conflitos sociais. Sem dúvida, esse processo se inicia antes, mas é a partir desse ano que os conflitos sociais se tornam mais visíveis e profundos. O nosso objetivo é analisar a luta de classes no Brasil a partir desse momento até a atualidade, no sentido de explicar sua dinâmica e tendências. Nesse sentido, vamos realizar uma breve contextualização da sociedade brasileira, focalizando principalmente o Governo Dilma, tendo em vista sua importância no processo de constituição da situação atual.

A sociedade brasileira vive, desde 1990, sob o governo Collor, época em que emerge no Brasil o regime de acumulação integral subordinado. A reestruturação produtiva começava a avançar e o Estado Neoliberal, representado pelo Governo Collor, realiza as primeiras políticas neoliberais. A crise de governabilidade e o Impeachment geraram o Governo Itamar Franco, que deu continuidade moderada ao neoliberalismo. A consolidação do neoliberalismo ocorre com o Governo Fernando Henrique Cardoso, em seus dois mandatos. No plano político institucional, a disputa principal era entre o bloco dominante, representado pelo governo, partidos aliados e setores da burguesia mais consolidados, e o bloco reformista, hegemonizado pelo Partido dos Trabalhadores e aglutinando burocracias partidárias e sindicais, entre outros setores.

A vitória de Luís Inácio Lula da Silva, nas eleições presidenciais de 2002, altera o quadro político nacional. O que ocorre é que o bloco reformista é desintegrado, sendo que sua maior parte e mais forte se torna parte do bloco dominante. O aparato estatal não muda em nada substancialmente, continuando neoliberal. Isso vale para o Governo Lula, com seus dois mandatos, bem como para o Governo Dilma, também em ambos os mandatos, sendo que o segundo mandato, nesse caso, está no início. O que caracteriza os governos do Partido dos Trabalhadores (Lula e Dilma) é o neoliberalismo neopopulista.

O que caracteriza o neoliberalismo neopopulista? Essa é uma forma específica de neoliberalismo, unindo aspectos que remetem à especificidade da sociedade brasileira com os interesses da burocracia partidária petista. O PT mostrou que não tinha um projeto de reformas macroestruturais, tal como propõe a social-democracia, nem um projeto de transformação social. O PT tinha como grande ambição e objetivo a conquista do poder estatal, não para apresentar um projeto político, seja qual for (governamental, revolucionário, etc.) e sim para obter as vantagens de se aquartelar no aparato estatal. Assim, o único projeto real do PT era o de ascensão ao poder estatal e preservação do mesmo. Ou seja, no fundo o PT tinha e é o que ainda tem, um projeto de poder, de conquista e preservação do poder estatal. No entanto, uma vez no poder e usufruindo dos seus privilégios, cargos, recursos (por via legal ou ilegal), é preciso também governar. Qualquer governo, no capitalismo, deveria ter um projeto de desenvolvimento nacional. Esse projeto é o que aponta como o desenvolvimento capitalista ocorre no âmbito nacional e inserido na dinâmica internacional. Os governos petistas nunca tiveram tal projeto.

E é isso que caracteriza o neoliberalismo neopopulista dos governos petistas. Na falta de um projeto de desenvolvimento nacional e diante da pressão internacional, adota o neoliberalismo e dá prosseguimento às políticas dos governos anteriores. Assim, as políticas neoliberais são adotadas rigidamente, seguindo as diretrizes internacionais (FMI, Banco Mundial, Unesco, etc.). No entanto, o projeto de poder do PT gerou algumas especificidades no seu neoliberalismo[1]. Ele realizou uma versão do neoliberalismo no qual se busca criar uma base de apoio, representado por um conjunto de partidos aliados, setores da burguesia, junto com uma parte do lumpemproletariado e burocracias (partidárias, sindicais, governamentais, etc.) e setores dos movimentos sociais. Para conseguir isso, realizou um conjunto de políticas estatais neoliberais que eram simultaneamente neopopulistas. No interior destas se destaca as políticas segmentares, que visa cooptar segmentos sociais específicos e setores dos movimentos sociais, e as políticas assistencialistas, desde o “Fome Zero”, que foi um fiasco, até as bolsas de auxílio para a parte mais empobrecida da população.

Apresentando uma versão brasileira das políticas de ação afirmativa, as políticas de cooptação apresentam algumas propostas que são mais gerais, como a política de cotas raciais, e geração de empregos, cargos, financiamento de pesquisas na área, entre outros elementos, que realizam uma cooptação mais direta de diversos setores da população negra. Isso também ocorre com as mulheres, homossexuais, etc. O objetivo de tal política neopopulista, é cooptar setores da sociedade sem grandes gastos estatais, máxima neoliberal. Esse processo de cooptação se caracteriza por criar uma forte adesão, através dos beneficiários diretos de tais políticas (os cooptados diretos) e da manipulação dos sentimentos e necessidades dos demais (cooptados indiretos), que devido ao vínculo identitário, mesmo não sendo beneficiado diretamente, apoia integralmente e inclusive com forte teor sentimental.

No entanto, tais políticas são relativamente frágeis. Isso ocorre devido ao fato de que esses setores cooptados não são grandes mobilizadores sociais e seu apoio é mais eleitoral e no interior de determinados instituições (especialmente as estatais). A parte do lumpemproletariado que recebe as bolsas, tal como a bolsa-família, e os setores cooptados de movimentos sociais e determinados grupos sociais, não possuem condições políticas para garantir uma base sólida para o governo. A fragilidade dessa base de apoio se torna ainda mais evidente devido ao seu relativo sucesso apenas em períodos de estabilização. Enquanto há estabilidade financeira e política, ela é suficiente para garantir a governabilidade e sucessos eleitorais. Contudo, a partir do processo de desestabilização, sua fragilidade se torna mais que evidente. O PT ao invés de criar bases de apoio junto aos trabalhadores, o que levaria, fatalmente, ao confronto com setores do capital (já que demandaria reforma agrária, nova política salarial, etc.), mas que teria solidez, preferiu unir as políticas neoliberais com o neopopulismo e assim conseguiu o aparelhamento do aparato estatal e manter a governabilidade e estabilidade durante o período de estabilização do regime de acumulação integral subordinado. Esse, no entanto, começa a mostrar seus primeiros sinais de desestabilização em 2012. É nesse contexto antecedente que podemos avançar na compreensão da luta de classes a partir de 2013 no Brasil.

O ano de 2012 foi marcado por uma ascensão do movimento grevista. O número de greves ultrapassou a dos anos anteriores e a situação financeira do país começava a sair da estabilidade e equilíbrio. A precarização do trabalho continuava se ampliando. A precarização dos serviços públicos, incluindo das universidades federais, que entraram em greve nesse ano, era outro sintoma do fim da estabilidade.

O início de 2013 já apontava para uma possibilidade de ascensão das lutas sociais. Havia uma expectativa de aumento da inflação, o que se verificou nesse ano em escala microscópica aliado com o descontentamento dos movimentos grevistas que não conseguiram grandes resultados no ano anterior, serviços públicos precarizados, problemas no transporte coletivo, mostram a existência de uma insatisfação silenciosa. O movimento estudantil, especialmente o seu setor não burocratizado, apontava para uma retomada das lutas dos anos anteriores[2] e o aumento do preço das passagens acaba desencadeando um fortalecimento das lutas estudantis sobre a questão do transporte coletivo. As manifestações estudantis se ampliam em maio de 2013 e a repressão estatal também. A violência estatal incentivou novas manifestações e os estudantes passaram a receber amplo apoio popular[3]. E, nesse contexto, eclodiram as manifestações populares de junho de 2013. Essas manifestações promoveram mudanças na dinâmica da luta de classes no Brasil e por isso merecem uma análise mais detalhada.

As manifestações de junho de 2013 foram derivadas das manifestações estudantis, sendo manifestações espontâneas (MARQUES, 2013; VIANA, 2013a; VIANA, 2013b). A sua eclosão teve como origem a insatisfação social gerada pela precarização e conjunto de outros processos sociais (incluindo acusações de corrupção e autoritarismo tanto do governo federal quanto de alguns governos estaduais), bem como pela expectativa de aumento da inflação, serviços de transporte coletivo, educação e saúde extremamente precarizados, aliado ao impacto do aumento do preço da passagem e repressão violenta dos estudantes. Nesse contexto, a insatisfação passou a se explicitar e as ruas foram tomadas. Estas manifestações, no entanto, superaram as manifestações estudantis, tanto pela quantidade muito maior de manifestantes, como também pela ampliação das reivindicações e maior pluralidade de posições políticas. A composição social era policlassista, contando com setores das classes privilegiadas e das classes desprivilegiadas, gerando um processo de ação coletiva sem maior direcionamento e unidade. Os representantes do movimento estudantil, em alguns casos, se afastaram das manifestações (tanto por falta de estratégia quanto por interesses político-partidários, entre outras motivações) e assim aqueles que iniciaram o processo e tinha respeitabilidade e tinham maiores possibilidades de conseguir unificar as manifestações em torno de um projeto político, se abstiveram e enfraqueceram as mobilizações. Em algumas cidades, como em Goiânia, mantiveram sua participação, mas agora concorrendo com partidos políticos, inclusive o PT, e com um setor da população descontente mas sem grande politização. Nesse caso, se tentou disputar a hegemonia do movimento, mas sem estratégia e agindo mais no dia e momento das manifestações, ao invés de realizar um trabalho anterior.

Diante desse contexto, a reação governamental foi de repressão e ao notar que isso era impopular e fazia crescer a insatisfação, passou a querer dividir as manifestações em dois grupos: os “legítimos” (que seriam pacíficos e estariam em seu pleno direito de protestar) e os “vândalos” (os mais radicais e os que exerciam atos de violência). O capital comunicacional (meios oligopolistas de comunicação) seguiu a mesma dinâmica, passando da crítica das manifestações para a crítica do setor mais radicalizado. A intenção era aparentar ser democrático e, ao mesmo tempo, reforçar a hegemonia burguesa no interior das manifestações, tentando criar uma corrente de opinião[4] desfavorável aos radicais, buscando, assim, evitar que este influenciasse o restante da população e manifestantes.

O bloco dominante usou a estratégia de isolar o bloco revolucionário[5]. As manifestações de 2013 marcaram um momento de radicalização da população e lutas espontâneas, que se espalharam até pelas pequenas cidades do interior, promovendo um breve processo de politização da sociedade. O bloco revolucionário, muito fraco anteriormente, sendo composto por pequenos grupos políticos, alguns poucos intelectuais, setores da juventude, algumas tendências de movimentos sociais, etc.  estava presente mas sem grande influência no processo geral. Nesse momento, com a politização e ala radical do movimento estudantil, aliado com a insatisfação de amplos setores da população e juventude, se iniciou um processo de fortalecimento do bloco revolucionário. Apesar disso, por falta de estratégia de alguns, pouco tempo de ação devido ao caráter inesperado das manifestações espontâneas, e contradições internas de grupos e indivíduos, o processo de avanço do bloco revolucionário foi limitado. O bloco reformista, por sua vez, se aliou ao bloco dominante e combateu as manifestações[6]. Isso ocorreu tanto devido às ideologias vigentes nos partidos progressistas[7], tal como o bolchevismo e seu vanguardismo antiespontaneísta, quanto à recusa dos mesmos (e dos partidos em geral) pela maioria dos manifestantes. Isso significou que as primeiras manifestações populares espontâneas de grande envergadura explicitaram uma recusa dos partidos políticos, incluindo os progressistas.

As manifestações ocorreram durante o mês de junho, tanto em grandes quanto em pequenas cidades e no seu final começou a ter uma presença de trabalhadores em atos localizados. Contudo, como era de se esperar, as manifestações não se sustentam por tempo indefinido. A falta de objetivos concretos, pois existiam múltiplas reivindicações (sendo as principais voltadas para educação, saúde, condenação de corrupção, transporte coletivo) e de um projeto político ou alternativo que apontasse para sua concretização eram outros elementos enfraquecedores das mobilizações. Assim, a multiplicidade e falta de unidade das manifestações, aliados com seu desgaste natural, acabaram fortalecendo sua tendência ao esgotamento. O grande problema é que isso gerou uma politização momentânea e uma corrente predominante de opinião mais avançada e que apontavam para uma autonomização da população que, no entanto, não conseguiu criar um processo cumulativo para as lutas posteriores. Isso pode ser explicado pela ausência do proletariado, como classe (ou seja, fazendo reivindicações explicitamente relacionadas com sua situação de classe social), e pela fraqueza do bloco revolucionário, tanto teórica quanto estratégica, sendo que a primeira reforça a segunda. As manifestações deveriam ter gerado um fortalecimento do bloco revolucionário e das lutas proletárias, o que ocorreu muito limitadamente.

As promessas da presidente Dilma Roussef durante o período das manifestações (punição dos corruptos, reforma política, etc.) retrocederam tão rapidamente quanto as mesmas. A luta de classes perde a radicalidade que se esboçou em maio e junho de 2013 e as manifestações e outras ações passaram a se limitar ao que já era realizado anteriormente. O bloco revolucionário não conseguiu superar sua debilidade teórica e estratégica, com raras exceções, e continuou preso, na maioria das suas tendências, ao praticismo e obreirismo. A luta cultural de alguns setores passou a refletir mais sobre as tendências das lutas de classes na sociedade brasileira e assim houve uma contribuição real expressa nas análises das manifestações, das tendências posteriores, a crítica do bloco reformista, apontamentos sobre importância da luta cultural e da necessidade de estratégia revolucionária, etc. Esse é o caso exemplar da Revista Enfrentamento e outros setores e intelectuais que apontaram para uma perspectiva revolucionária.

O ano seguinte foi marcado por um processo de amenização das lutas de classes em comparação com 2013. Dois eventos contribuíram para isso: a Copa do Mundo de Futebol e as eleições presidenciais e para governos estaduais, senado e câmara legislativa federal e estadual. As mobilizações mais fortes foram dos atingidos pelas obras da copa, estudantes ativistas que foram protagonistas no ano anterior e mais alguns poucos grupos e ações sem grande repercussão. A ação principal foi efetivada pelo Estado. O Estado, como “capitalista coletivo ideal”, realiza uma política de repressão preventiva visando conter o avanço das lutas sociais e especialmente, nesse contexto, os protestos a respeito da Copa do Mundo de Futebol. Esse evento, cujas obras faraônicas, acompanhadas de denúncias de corrupção, bem como criação de estádios em cidades de pouca tradição futebolística, torcida e usos posteriores para os mesmos, aliados ao desalojamento de inúmeras pessoas de regiões utilizadas para as construções, era uma vitrine mundial que os protestos poderiam manchar a imagem do país e do governo. A truculência policial e a prisão de diversos militantes promoveram um recuo dos ativistas estudantis e em geral. A repressão preventiva e o medo foram as principais armas do aparato estatal nesse contexto.

A derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo, algo inesperado por sua tradição futebolística e estar disputando esse torneio no próprio país, e o vexame da goleada sofrida pela seleção da Alemanha, abalou ainda mais a credibilidade do governo. Esse elemento apenas acrescentava (junto com o processo de manifestações do ano anterior e repressão preventiva) um motivo a mais para a derrota do PT e seus aliados nas eleições presidenciais do segundo semestre. No entanto, isso não ocorreu. O segundo semestre de 2014 é marcado pela busca do governo e dos blocos dominante e em canalizar a luta de classes para a disputa eleitoral. O bloco dominante se dividia entre a ala governista, representada pelo PT e aliados, e a ala oposicionista, representada pelo PSDB e aliados. Outras forças políticas menores atuaram, mas não conseguiram ultrapassar essa polarização, a não ser durante um período curto no qual houve a comoção com a morte do candidato Eduardo Campos, o que ajudou sua substituta, Marina Silva, ganhar um apoio eleitoral inesperado. A alegria durou pouco, pois a fraqueza da candidata, tanto discursiva nos debates quanto em matéria de propostas e estratégia eleitoral e sua força partidária restrita não sustentava uma posição permanente na preferência eleitoral e assim acabou tendo sua candidatura sendo superada pela retomada da polarização no interior do bloco dominante representada pela candidata à reeleição pela ala governista, Dilma Roussef, e o candidato do PSDB, Aécio Neves, pela ala oposicionista.

O bloco reformista tentou se recompor e retomar um certo espaço na sociedade civil e no plano eleitoral. No entanto, passaram a reproduzir a estratégia petista, no qual o foco no moralismo progressista (fundado na ideologia do gênero, politicamente correto e afins)[8] se tornaram prioridade para alguns partidos progressistas, especialmente o PSOL, o maior dentre eles. Com um discurso ideológico e reprodutor da hegemonia petista, esse partido não conseguiu aglutinar e se tornar uma alternativa, ficando em uma posição eleitoral insignificante. Da mesma forma, outros partidos pequenos, de todas as posições políticas, não conseguiram ir além de debates estéreis e pouca presença no interior da população.

O bloco revolucionário recuou drasticamente, especialmente no ativismo. A derrota das manifestações de 2013 e principalmente a repressão preventiva do aparato estatal no primeiro semestre, aliado com a canalização da luta de classes para a instância eleitoral, reduziu seu espaço de atuação. A ação efetiva de maior peso nesse momento foi a luta pelo “voto nulo autogestionário” e as campanhas anarquistas em favor do voto nulo ou abstenção. Além disso, havia a continuidade das formas de luta comuns em períodos de recuo das lutas de classes.

A dinâmica eleitoral gerou um segundo turno na eleição presidencial entre os candidatos Dilma Roussef e Aecio Neves. A candidata petista usou várias estratégias para angariar votos, tal como o discurso do medo (apelando para as poucas melhorias existentes a partir dos governos petistas e abstraindo suas origens nos governos do PSDB). O candidato do PSDB não conseguiu ir além da demonstração de maior competência discursiva e mais desenvoltura nos debates televisivos. O debate foi totalmente despolitizado por todos os candidatos e tudo passou a girar em torno da competência gerencial e de questões isoladas (educação, saúde, segurança, etc.). O segundo turno foi acompanhado do uso dos mesmos procedimentos pouco éticos na disputa eleitoral, principalmente pela candidatura petista. A candidata petista tinha maior apoio na classe burocrática e na classe intelectual, apesar de sua política de precarização das universidades que havia gerado o movimento grevista de 2012, e nos setores mais empobrecidos da população e o setor da sociedade cooptado pelas políticas segmentares (sexo, raça, sexualidade, etc.). No entanto, o setor mais ativista, devido às práticas governamentais de repressão nos dois últimos anos, tendia ao voto nulo e isso lhe retirou um volume considerável de votos. No segundo turno, ela conseguiu ganhar com o discurso do medo, o apoio (“crítico”) da maior parte do bloco reformista e maior quantidade de votos no nordeste do país[9].

Assim, a vitória da ala governista do bloco dominante num segundo turno e de forma muito apertada mostrou que sua hegemonia já estava enfraquecida. Isso fortaleceu tanto a oposição oficial e principal no plano eleitoral, representado pelo PSDB, quanto a ala extremista do bloco dominante que passou a ter maior presença no cenário nacional. As razões da vitória apertada de Dilma Roussef foi o deslocamento do apoio de parte da burguesia para o PSDB e a ala semiproletária do bloco revolucionário ter se afastado e deixado de votar no PT (acompanhando a ala proletária do mesmo), e, principalmente, grande parte da população insatisfeita, especialmente das classes desprivilegiadas, que engrossaram a abstenção e o voto nulo (a soma de votos nulos, brancos e abstenções constituiu um terço do eleitorado total do país). Assim, a ala oposicionista do bloco dominante se tornou mais presente e ousada. O PSDB declara que sua oposição não será apenas nas disputas eleitorais, mas durante os quatro anos de mandato. Uma ala extremista, bem como grupos religiosos mais conservadores, passam a ter maior presença na sociedade civil.

Assim, o resultado eleitoral promoveu uma cisão no bloco dominante. A unidade e unificação relativa para manter a governabilidade e a reprodução do capital foi substituída pela luta permanente pelo poder. Após as eleições, os escândalos de corrupção e as manifestações solicitando impeachment e intervenção militar mostram um pouco da situação de governabilidade instável a partir desse momento. A ala governista do bloco dominante vai perdendo apoio e a crise financeira que emerge a partir do início de 2015 acaba reforçando seu desgaste. O caso da corrupção na Petrobrás e seus desdobramentos facilitam os ataques oriundos do capital comunicacional e demais alas do bloco dominante. Isso cria afastamento dentro do próprio PT, tal como indivíduos e grupos que abandonam o partido, seja por estar mais à esquerda seja por oportunismo ao ver que o barco está afundando.  

Esses acontecimentos apenas mostram a cisão do bloco dominante e sua luta pelo poder estatal junto com as necessidades do capital de aumentar a exploração e diminuir mais ainda os gastos estatais, sendo que o governo petista vem realizando ou permitindo isso paulatinamente, mas sem romper com certos compromissos que podem minar o que restou de sua base de apoio eleitoral. A popularidade da presidente caiu para menos de 10% e o barco parece estar desgovernado. A crise financeira e os cortes de verbas para as universidades, gerou um novo movimento grevista em mais de 50 instituições, bem como em outras instituições federais, o crescimento da inflação, desvalorização da moeda, desenvolvimento do capital (“crescimento econômico”) desacelerado, entre outros processos, complementam o quadro estabelecido.

Nesse contexto, o bloco reformista se divide entre os apoiadores discretos do governo com medo da “intervenção militar” ou “fascismo” e outros mais ousados que apoiam greves e outros processos. O bloco revolucionário que tendia para um fortalecimento diante da conjuntura, não conseguiu grande avanço além do que já realiza normalmente, embora novas manifestações e ações tendam a ocorrer graças às políticas do governo federal e dos governos estaduais e isso pode reforçá-lo. Nesse caso, a juventude aparece como uma das principais forças em luta, tal como se pode observar nas ocupações de escolas em São Paulo depois da investida do governo estadual de Geraldo Alckimim (PSDB) propondo sua “reorganização”.

O bloco dominante, apesar das rachaduras e divisão interna, mantém a hegemonia com a criação imaginária de duas falsas polarizações: entre PT e PSDB (e oposição em geral) e entre moralismo conservador e moralismo progressista. A crise política-institucional que surge em 2015, tendo como elementos propulsores as denúncias de corrupção e a campanha pelo impeachment, ao lado da estratégia do PSDB de fazer oposição cotidiana e no âmbito político-institucional (principalmente no parlamento e meios de comunicação), foi se agravando com as investidas de punição de corruptos e desgaste do governo, tanto por sua incompetência quanto por seu imobilismo. Isso é reforçado pela crise financeira iniciada, não tão grave quanto anunciado pela grande imprensa, mas também não desprezível, como propagandeado pelos pró-governistas, e que foi se aprofundando e aumentando a gravidade, especialmente pela falta de reação concreta por parte do governo.

Essa polarização, alimentada por governistas e antigovernistas na política institucional e reforçada nos meios oligopolistas de comunicação e na internet, especialmente nas redes sociais, acaba ofuscando os reais problemas sociais e as possíveis soluções dos mesmos. A ala governista do bloco dominante se mostra inoperante e acuada, esboçando reações que pouco avançam no sentido de reverter o quadro político-institucional. A ala oposicionista do bloco dominante, realiza avanços e recuos e também não apresenta nenhuma proposta concreta de solução dos problemas existentes, se limita a focalizar o governo como problema e o impeachment como solução[10]. Além de cargos e posições em disputas no âmbito governamental, o ponto central são as eleições presidenciais. Esse processo tem um efeito despolitizador e graças aos meios oligopolistas de comunicação, temos um fortalecimento do conservadorismo na maioria da população. Ou seja, apesar do objetivo principal da disputa no interior do bloco dominante seja por cargos e eleições, ele também tem o objetivo de afastar o fantasma de 2013 que poderia desembocar num outro tipo de polarização, a de classes. Esse processo é facilitado pela estratégia de identificar o PT com a esquerda e assim torna possível combater o primeiro em nome do segundo e vice-versa.

Uma outra polarização, secundária, ocorre no plano comportamental e moral. Nas últimas eleições presidenciais, foi expressa, sob forma cômica[11], no “debate” entre Levy Fidelix (PRTB) e Luciana Genro (PSOL). Nesse caso se institui uma polarização entre o moralismo conservador e o moralismo progressista[12]. O moralismo conservador consegue força e apoio de setores de igrejas mais ortodoxos e de grande parte da população, especialmente das classes desprivilegiadas e setores mais conservadores das classes privilegiadas, enquanto que o moralismo progressista tem suas raízes e força nos meios intelectualizados e em certos setores das classes privilegiadas. Essa polarização secundária cumpre o mesmo papel que a primária, pois a luta de classes é substituída por disputas sobre comportamento, sexualidade, etc., com altas doses de dogmatismo e pouca racionalidade, de ambos os lados, bem como confusão (intencionais ou inintencionais, dependendo do caso) entre interesses pessoais e grupais. O domínio dos dogmas (seja da religião, da ideologia liberal ou da ideologia da moda, entre diversas outras possibilidades) e os extremismos derivados, garantem escandalização e violência, gerando cada vez mais afastamento da grande maioria da população e antipatia de antigos simpatizantes. Esse processo tem um efeito político significativo por ocorrer no interior dos meios intelectualizados e movimentos sociais, que é de onde emergem um número expressivo, proporcionalmente falando, de indivíduos e grupos do bloco revolucionário, que ao se enfraquecer não só permite a reprodução das polarizações anteriores como também o elo entre forças políticas e organizadas de caráter proletário e proletariado. Há um potencial explosivo que pode se manifestar, pois o descontentamento das classes desprivilegiadas é grande e tende a crescer. As duas falsas polarizações estão freando a realização desse potencial, mas ele está latente na sociedade brasileira. 

Assim, as duas falsas polarizações engendradas pelo bloco dominante (com apoio do bloco reformista) acabam promovendo um processo crescente de despolitização e de aumento de sentimentos antipáticos, maniqueísmos, intolerância, ressentimentos e também conflitos que cada vez mais tendem a ser violentos. Esse processo gerou um estado de letargia que não aponta para nenhuma alternativa ou perspectiva. No entanto, a alternativa está presente e, tal como em 2013, pode explodir a qualquer momento e, tal como no ano que antecedeu este, vários sintomas e processos vão se constituindo para perceber sua tendência. A crise financeira e a busca de solução dela através de mais neoliberalismo só tende a agravar as questões sociais e o empobrecimento da população. Ao lado disso, as falsas polarizações tendem a revelar seu verdadeiro sentido quando o caráter de classe do processo em curso vir à tona. Esses sintomas são visíveis com as políticas de austeridade e mais neoliberalismo, por um lado, e novas lutas que começam a emergir. Depois do presente, virá o futuro.

Referências


BRINTON, Maurice. Maio de 1968. Rio de Janeiro: Conrad, 2002.

DAVIS, Mike. Estrada de Metal Pesado. In: MARICATO, Emília (org.). Cidades Rebeldes. Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.

MAIA, Lucas. Para Além dos Protestos. Enfrentamento. Ano 8, num. 13, jan./jun. de 2013. Disponível em: http://www.enfrentamento.net/Enf%20esp.pdf Acessado em 25/06/2013.

MARQUES, Edmilson. A Espontaneidade das Manifestações. Enfrentamento. Ano 8, num. 13, jan./jun. de 2013. Disponível em: http://www.enfrentamento.net/Enf%20esp.pdf Acessado em 25/06/2013.

VARELA, Raquel. Greves, Relações Laborais e Direitos Sociais na Revolução dos Cravos em Portugal (1974-1975). Revista Em Pauta. Vol. 11, num. 31, 2013.

VIANA, Nildo. Manifestações Populares e Luta de Classes. Enfrentamento. Ano 8, num. 13, jan./jun. de 2013b. Disponível em: http://www.enfrentamento.net/Enf%20esp.pdf Acessado em 25/06/2013b.

VIANA, Nildo. Representações Cotidianas e Correntes de Opinião. Revista Espaço Livre, Vol. 10, num. 19, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/293/227  acessado em 18/11/2015.

VIANA, Nildo. Da ocupação das ruas à ocupação da vida: uma análise das manifestações populares no Brasil atual. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 1, 20 de junho de 2013. Disponível em: http://www.cadernoterritorial.com/news/da-ocupa%C3%A7%C3%A3o-das-ruas-%C3%A0-ocupa%C3%A7%C3%A3o-da-vida%3A-uma-analise-das-manifesta%C3%A7%C3%B5es-populares-no-brasil-atual-nildo-viana/ Acessado em 20/06/2013a.

VINICIUS, Leo. A Guerra da Tarifa. Rio de Janeiro: Faísca, 2004.







[1] Em sua autoimagem ideológica, necessária para se apresentar como não sendo neoliberal, os ideólogos petistas criaram o termo “neodesenvolvimentismo”, menos comprometedor que neoliberalismo.
[2] As lutas estudantis anteriores remontam as ações e manifestações do Movimento Passe Livre e outras iniciativas. Sobre isso é possível consultar: Vinicius (2004).
[3] Esse processo foi analisado por diversos autores e obras, sendo que se destacam as seguintes contribuições: Marques (2013); Maia (2013), Viana (2013a), Viana (2013b), Davis (2013).
[4] Para entender melhor esse processo é importante entender a dinâmica das correntes de opinião e as forças formadoras das mesmas (VIANA, 2015).
[5] Abordamos as lutas de classes no Brasil através da análise das classes sociais e suas lutas, bem como de suas expressões mais conscientes e organizadas, expressas nos blocos sociais. Nesse caso, temos três grandes blocos sociais. O bloco dominante, que expressa os interesses da classe dominante e tem como integrantes o aparato estatal, as instituições da burguesia, a classe capitalista, a maior parte da burocracia e da intelectualidade, os partidos declaradamente de direita e os governistas (que podem se dizer de “esquerda”, tal como PT e PC do B – Partido Comunista do Brasil, entre outros que são a base partidária do governo petista aliado com partidos declaradamente direitistas). O bloco reformista é composto por parte da burocracia e intelectualidade, especialmente as burocracias partidárias dos partidos mais radicais ou de oposição ao governo, que, no caso brasileiro, são o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), PCO (Partido da Causa Operária) e diversos outros pequenos partidos e grupos aspirantes a se tornarem partidos. O bloco revolucionário é composto por grupos políticos, tendências dos movimentos sociais, jovens e operários revolucionários, alguns intelectuais, tal como o Movaut – Movimento Autogestionário, alguns grupos anarquistas, a ala revolucionária do movimento das mulheres e outros movimentos sociais e um grande contingente radicalizado mas desvinculado de organizações políticas.
[6] Esse processo é muito comum e basta ver as experiências da Revolução Portuguesa (VARELA, 2013) ou do Maio de 1968 (BRINTON, 2002) para ver o papel dos partidos comunistas e semelhantes na luta contra as ações espontâneas dos trabalhadores. Isso é derivado do seu caráter burocrático e dirigista, expressão dos interesses da burocracia como classe social, que deve desconfiar e lutar contra as formas de luta não controladas por eles.
[7] O termo “progressista”, aqui, não tem uma conotação positiva. Progressista, em nossa concepção, é uma posição política que visa o progresso no interior da sociedade burguesa, o que revela seus limites intransponíveis. O progresso no interior da sociedade burguesa só pode ser o progresso capitalista, ou seja, um desenvolvimento ou reforma do mesmo, o que significa sua manutenção. Logo, tanto as concepções social-democratas, quanto as bolchevistas e semelhantes, são progressistas. Aqueles que se dizem “revolucionários” e pregam a luta armada também são progressistas, pois sua concepção de “socialismo” não ultrapassa o âmbito de um capitalismo reformado.
[8] O capitalismo contemporâneo, com a hegemonia pós-estruturalista e neoliberal, gerou novas concepções vigentes, incluindo um moralismo progressista (que tem vertentes diferenciadas, como a neoindividualista e acaba derivando dele um imoralismo) e também, em certos contextos, gerou mais força para o moralismo conservador, também em diversas vertentes. A identificação das forças progressistas (especialmente partidos comunistas e social-democratas e, no caso brasileiro, o PT) como sendo “esquerda” acaba gerando a falsa ideia de que o moralismo progressista é uma concepção esquerdista. Ele é, no fundo, uma versão do moralismo burguês, e, portanto, é direitista tanto quanto o moralismo conservador. A confusão terminológica que os progressistas e conservadores realizam hoje é uma estratégia para polarizar entre eles e ofuscar uma concepção realmente revolucionária. Não deixa de ser curioso ver como os liberais contemporâneos estão querendo ressignificar os termos “direita” e “esquerda”. Isso aparece, por exemplo, na concepção que afirma que a direita defende a liberdade e a esquerda a igualdade (ou outras dicotomias no interior da sociedade capitalista, como mercado X estatismo; individualismo X coletivismo, etc.). Na concepção marxista, direita significa a posição política da burguesia e esquerda a posição política proletária, tendo um caráter de classe e concreto, sendo que a liberdade proposta pela classe dominante é a individual e formal e a igualdade sendo coisa secundária e apenas de “oportunidades” enquanto que para o marxismo a liberdade e a igualdade são inseparáveis e objetivos do comunismo. Para fugir da confusão e dessa dicotomia, talvez seja mais estratégico abandonar o uso desses termos e usar nova terminologia para distinguir os dois polos da luta de classes.
[9] As eleições presidenciais no Brasil acompanham a diversidade e diferença regional (e de classe, embora nesse aspecto sem homogeneidade). O PT, quando tinha um discurso mais oposicionista, ganhava menos votos no nordeste e norte e ganhava mais votos no sudeste e no sul. No entanto, o seu principal apoio eleitoral foi se deslocando com o passar do tempo. O nordeste, mais empobrecido, e mais sensível às bolsas-família e outras migalhas oferecidas pelo governo federal, acabou oferecendo uma votação mais expressiva para a candidata do PT, bem como no norte. No centro-oeste houve equilíbrio e no sul e sudeste o PSDB ganhou. Isso gerou um certo preconceito em relação aos nordestinos pelos mais direitistas na região sul e sudeste, incentivado pelo seu peso eleitoral na eleição presidencial.
[10] Não existe consenso na ala oposicionista. O principal representante dessa tendência é o PSDB, mas no seu interior se agrupam também tendências semifascistas, neoliberais de diversos tipos, setores “democráticos” e “reformistas”, etc. Alguns defendem o impeachment e outros não, para citar um exemplo de diferença no seu interior.
[11] Aliás, a comicidade é uma característica perene da política institucional brasileira. Basta ouvir os discursos da presidente Dilma Roussef, dignos de um programa televisivo de humor, para se ter uma noção disso. Há um humor involuntário que é inofensivo em si, como os discursos presidenciais anteriormente citados, como um que é cômico apenas por seu caráter absurdo, como as práticas parlamentares. Isso apenas revela o baixo nível da política institucional brasileira.
[12] A moral pode ser aqui compreendida como um conjunto de normas produzidas socialmente e impostas posteriormente aos indivíduos. O moralismo é caracterizado por uma prática de julgamento e condenação com base em uma determinada moral (VIANA, 2015). O moralismo progressista formalmente é igual ao conservador, a diferença está no conteúdo, pois sua base moral é distinta.